domingo, 30 de janeiro de 2011

Samba

Olha como a música sobe, eu vejo cada nota, subindo, uma após outra em perfeita harmonia. Elas eclodem - sincronia contínua - vejo-as nascer em bolhas, saindo dos instrumentos e esbarrando umas outras. Sobem e quebram nessa barreira invisível a que chamamos atmosfera. Espalham-se incandescentes, algumas flutuam, outras caem - como chuva - contaminando todo objeto ou matéria que houver ao redor. Meu corpo alegria, infla dessa batida que me acolhe. Vou explodir vida, felicidade.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Mosaico

Verde vermelho verde
vermelho verdevermelhoverde
verde verdevermelhoverde
O chão de pastilhas, cinquentista.
O despertar dos olhos inchados.
A dúvida das paixões
doe na lata de cerveja;
as conversam ecoam
lembrança.

Transição

Observo o amanhecer
entre colunas de concreto;
rua Augusta.
As cores;
Rajadas de amarelo,
violeta e vermelho
mesclam o monotom impreciso
- azulcinzescuro;
A Lua mingua
minguante,
logo foge.
E de repente:
um céu que flameja.
A rua borbulha
às 6 da manhã;
transito.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

É Verão

Me espalho pela manhã, bem cedo. Busco toda fresta que me permita adentrar - democraticamente. Gosto do hemisfério Sul, permaneço quase o ano inteiro. Invado o quarto da menina, primeiro acaricio os lençóis - irradio quando são brancos, explodo em minha intensidade, sorrindo por todo lado; depois me aproprio de cada milímetro de pele, começando pelas pernas; teço desenhos - enfileirando esferas douradas sobre a cama, até a parede. Deslizo suavemente - aqueço essa nudez, com inocência, como se antes nunca houvesse sido tocada; ilumino a face, a faço despertar do sono leve, sinto sua preguiça dócil que logo me abandona. Tenho dúvida e acanho, retrocedo um pouco minhas reproduções que oscilam pela parede. Envaideço, pois retorno todos os dias e - ao longo de meses - ah, a janela sempre aberta.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Hoje

Desperto - quase nove - depois de longa noite de insônia; interessante como ela sempre se acomoda em minha casa com intrusa intimidade, me fazendo companhia por janeiro. Abro o armário, procuro um livro exato, folhieo - em desordem. Desordem permitida pela mesma desordem que permeia a criação em prosa poética do autor, há muita liberdade nas matrizes imagéticas. Impressionante, é Cortázar - me inunda paixão, as palavras que tomo, me tomam, agora são minhas - havia quase me esquecido de como nossos diálogos exasperam. Acredito; há muito fanatismo no processo criativo; realismo fantástico.

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O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se emagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.
Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas deprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

(CORTÁZAR, Julio; in HIstórias de cronópios e de famas ; p. 85 - 1964; Editora José Olympio - tradução: Gloria Rodríguez)

Anacrônico

A insônia sempre me toma em janeiro;
a perecividade do amor complexo
complexado,
também.
Deve haver alguma relação
direta
entre o verão e o entrave:
assumir o instintivo;
atração e matéria.
É sempre colérico
o sufocamento
- mudez.
Há tanta luz
laranjacromo;
abaixo do Equador
natural é sorrir.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Brasilidade

Chuva suor e cerveja
Janeiro;
É carnaval,
sinto meu corpo todo:
samba
Na vida
todo mundo tem que fazer uma fantasia;
no Brasil
deveria ser carnaval o ano inteiro.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Sobre asfalto

A medida que caminho, é como se meu cérebro assimilasse o mundo, como se ele fosse levado a raciocinar a cada vez que meus pés entram em atrito com esse chão que piso - piso, creio, com certa brutalidade, a brutalidade do despertar matinal; esse asfalto, que definiticamente não é o mesmo de ontem. E a velocidade com que determino as passadas é diretamente proporcional à sensação do alívio de desconcerto, a brisa acaricia, as pernas punem - prazeirozamente.
O asfalto já pisado ontem, íntimo, deixado para trás - tido como passado -, complacente: não é preciso temer ou ansiar pelo desconhecido; a escolha por andar pelo mesmo quilometro demonstra processo construtivo, há familiaridade com aquele chão que confunde, aquele chão que estimula a sensação de estabilidade, mas em verdade, é sempre um pouco mais solidificado na mesma medida em que é modificado - quase imperceptível - rotineiramente.
Tempo e espaço - passado, presente, futuro - cordiais ao sujeito; partamos do princípio de que o passado é o asfalto pressionado, que me impulsiona para o techo seguinte, este, futuro; mas, e o presente? O presente é intocável, o presente é utópico; não existe o asfalto que estou pressionando, simplismente porque passou, e existe apenas o que pressionei, o que acabei de pressionar e o que está além, ávido por ser pressionado; e se permaneço no mesmo perímetro para tentar despistar o passado e apreender o presente, não passa de ilusão, engano. Assim, enquanto escrevo: cada caracter surge numa tela de LED - representando o passado de algum impulso elétrico - através do ativo ritmo com que pressiono as teclas; impulso elétrico, fruto de um processo, acarretamento: longo entendimento de informações debulhadas em aproximados 23 anos - passados.
Há muita pressão; o presente é o mais incerto de todos os parâmetros, o passado é irretocável. Sinto medo de esquecer.


***

Oração

Escrevo por vaidade:
a vaidade raciológica,
há muita vaidade
sensitiva.
Escrevo porque sinto
medo
medo do abandono
sufocamento ideológico,
medo de esquecer.
Escrevo;
meu cérebro não pára
de me contrair.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Reflexão

Questiono tudo, porque sinto incontrolável curiosidade do mundo.
Preciso quase tocar com os olhos, experimentar a tensão de cada ligação atômica; saber cada minúcia - textura, ruído, cor - de cuja matéria é composta.
E sinto. Que outro indicador senão o ego? Se estou indissociavelmente presa à mim? É o meu olhar infantil: crua curiosidade; movimento da livre compreensão de real. Infante, não como crítica, apenas como olhar obscenamente inocente - fanatismo.

Primitivo

É lindo:
o jeito suave
desajeitado;
como ele anda.
Sempre sem jeito.
Singeloimpetuoso;
como contrapor ciano à magenta.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Verborragia

Situação hipotética:
vomitaria
meu cérebro;
dejetos e aflições
por todos
os lados.
Sujaria todo mundo
desse músculo
impreciso.

***

Lucidez

A maior representação de avesso
é estar de ponta cabeça.
O incomodo denota incoerência;
o avesso dói na lucidez;
há muito sangue, pouca prática.
Estar avesso:
é como não caber em si.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Fragmentos

Ele diz:
que meus quadris
são convidativos;
O balançar
do meu vestido
- lânguido;
segue o ritmo
- toc toc -
incessante
ruído do meu salto;
caminho.
- Caminhar;
sempre há pressa,
quando há destino,
horário certo.
Gosto da ideia
descomprometida;
- esmo.
Ele assume:
os teus cabelos;
se não caissem
de forma tão leve,
- zigzag pernicioso -
de tua cabeça;
desconfiaria:
ousada,
avessa arquitetura.
Há muitos porquês;
Envaideço,
quando ele diz:
- É linda;
tua liberdade.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Proposições

"Eu diria que a linha, na maioria das vezes, apenas estimula o vazio"

(Mira Schendel)

A linha é uma necesssidade humana em preencher o que já é cheio.
Uma desconstrução em planos, antiteticamente, constrói um olhar para o novo.
Novo, existência antes despercebida.

Há muita tensão insuflada;
tensão em linhas,
obsessões alineares.

Breve percepção do sentido

Lygia Clark me fez pensar
que nunca me senti feita
de outro material.
Nunca me propus questionar essa composição
essencialmente:
hidrogênio-oxigênio-carbono.
Não me enrolei em filme plástico.
Não me senti retorcida, de metal.
Nunca me vesti de tinta, ou mel, ou flores;
talvez nem mesmo de própria nudez.
Já me grafei letra?
Já me compus música?

Me acabo na sensação
- de que estou muito mais vestida
que preciso.
Já não seria minha pele
paradigma intrasponível suficiente?
Sempre exageradamente envolta
por tecido;
nua em crença.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Quase como saudade

lígia:

o pedaço de céu mais visivelmente azul
[de uma cidade cinzescura
[que dança a vida tropeçando como uma bailarina ébria
[por calçadas em mosaico português augustino
[e na grama duma microcidade acadêmica
[periférica metropolatinamericana;
(co)piloto de uma viagem eternamente noturna
[pelos mares azuescuros enluarados da mente -
minha amiga.
(e eu, um mal poeta)

G.F.
(11/2009)

sábado, 8 de janeiro de 2011

Amor

E como ter fé num amor cuja moral desmoraliza?
O pudor; que me farta, que me falta.
Se é preciso escolhas; a dúvida é uma decisão deliciosa.

" Engraçadinha teve um dos sonhos mais exasperantes de sua vida. Via o interior de uma igreja, de belos santos seminus; nos altares o sono dos círios. Duas noivas ajoelhadas. No sonho, Engraçadinha exclama: "Sou eu!" Era, sim, uma das noivas; e a outra: - Letícia. A voz de um invisível padre estava perguntando se ela queria mesmo ser esposa de... No próprio sonho, Engraçadinha fazia espanto: - "Mulher já pode ser esposa de mulher?" Coisa curiosa! Ela observava a possibilidade com um espanto divertido, mas sem horror. Horror nenhum. E, subitamente, Sílvio apareceu no lugar de Letícia. Em seguida, já não era mais Sílvio e sim o ginecologista. De joelhos, Engraçadinha virou-se para ver os santos seminus, realmente lindos" (p. 149; cap. 25)

" - O senhor acha que uma mulher pode gostar de mais de um ao mesmo tempo? Acha?
Dr. Bergamini não sabe o que responder. Aprendera, em 20 anos de ginecologia, que a mulher normal, equlibrada, é capaz de amar dois, três, quatro ao mesmo tempo. O amor múltiplo é uma exigência sadia de sua carne e de sua alma. A exclusividade que ela dá, e que o homem exige, representa um equívoco ou, pior: - um aviltamento progressivo e fatal. Cada minuto de fidelidade significa assim um novo desgaste. Há tão pouco amor por isso mesmo: - porque o degradam com deveres, com obrigações. Como dever, como obrigação, a fidelidade é uma virtude vil. Com uma vergonha mesclada de asco, ele responde:
- A mulher só deve amar um de cada vez.
Ao mesmo tempo que dizia isso, teve ódio de si mesmo e da própria covardia. Gostaria de responder, aos berros: "Ame. A mulher séria é a que ama. Enquanto não ama, ela não é nada. A mulher que não ama acaba apodrecendo". Diria ainda: - "Não amar é apodrecer". Era o que tinha aprendido na sua clínica ginecológica. Até aquela data, não encontrara um câncer feminino que não tivesse sua origem na pura e simples falta de amor. Mas como poderia atirar essas verdades eternas e brutais a uma adolescênte que começava a amar? Fazia abortos, desafiando a ética da classe; era considerado um bandido da especialidade; mas não tinha coragem de aconselhar uma cliente casada: "Não ama seu marido? Pois ame alguém e já. Não perca tempo, minha senhora"." (p. 161; cap. 28)

(RODRIGUES, Nelson; in Asfalto Selvagem - Engraçadinha, seus pecados e seus amores - 2008, Editora Agir/ Ediouro)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Domingo

Há muitos clichês de ano novo; acho graça. Mas como os inícios são mal vistos se expressados pela perspectiva da crítica, bem, tenho pensado e sentido muitos detalhes. Foi uma passagem de sexta para sábado, cuja contagem de tempo estabelecida me faz crer que hoje já seja domingo, sempre acreditei que os domingos fossem um grande clichê, talvez um momento de tédio que prenuncia o retorno à rotina, mas hoje sinto o domingo como uma transição precisa, muito mais precisa que a passagem de uma sexta-feira 31 de dezembro a um sábado, primeiro de janeiro. Pelo simples fato de que o domingo reverbera um recomeço recorrente, ao qual não posso escapar, a cada contagem de seis dias.
Sobre o sábado, os comentários permanecem ácidos, as risadas sendo compartilhadas com cumplicidade, tudo como há de ser numa reunião em família - como tantos domingos. Mas confesso, senti uma fé peculiar, sinto um orgulho peculiar, sinto uma esperança peculiar e ingênua; sinto um concreto, emocionante rito de passagem, foi meu primeiro dia de janeiro e - no alge de meus 23 anos de práxis brasileira - vi uma mulher subir a rampa do Palácio do Planalto; saborosa satisfação que nunca tive ao ler os cadernos de história. Acredito no encadeamento: a ideologia concentra-se nas sinapses, convicções nos músculos; e o movimento de rotação da Terra concluí que, após findo regime ditatorial, 25 anos mais tarde, Dilma Rousseff passa em revista às tropas. Ironias à parte, há muita simbologia num salto alto, ainda mais nos dela.