sábado, 8 de janeiro de 2011

Amor

E como ter fé num amor cuja moral desmoraliza?
O pudor; que me farta, que me falta.
Se é preciso escolhas; a dúvida é uma decisão deliciosa.

" Engraçadinha teve um dos sonhos mais exasperantes de sua vida. Via o interior de uma igreja, de belos santos seminus; nos altares o sono dos círios. Duas noivas ajoelhadas. No sonho, Engraçadinha exclama: "Sou eu!" Era, sim, uma das noivas; e a outra: - Letícia. A voz de um invisível padre estava perguntando se ela queria mesmo ser esposa de... No próprio sonho, Engraçadinha fazia espanto: - "Mulher já pode ser esposa de mulher?" Coisa curiosa! Ela observava a possibilidade com um espanto divertido, mas sem horror. Horror nenhum. E, subitamente, Sílvio apareceu no lugar de Letícia. Em seguida, já não era mais Sílvio e sim o ginecologista. De joelhos, Engraçadinha virou-se para ver os santos seminus, realmente lindos" (p. 149; cap. 25)

" - O senhor acha que uma mulher pode gostar de mais de um ao mesmo tempo? Acha?
Dr. Bergamini não sabe o que responder. Aprendera, em 20 anos de ginecologia, que a mulher normal, equlibrada, é capaz de amar dois, três, quatro ao mesmo tempo. O amor múltiplo é uma exigência sadia de sua carne e de sua alma. A exclusividade que ela dá, e que o homem exige, representa um equívoco ou, pior: - um aviltamento progressivo e fatal. Cada minuto de fidelidade significa assim um novo desgaste. Há tão pouco amor por isso mesmo: - porque o degradam com deveres, com obrigações. Como dever, como obrigação, a fidelidade é uma virtude vil. Com uma vergonha mesclada de asco, ele responde:
- A mulher só deve amar um de cada vez.
Ao mesmo tempo que dizia isso, teve ódio de si mesmo e da própria covardia. Gostaria de responder, aos berros: "Ame. A mulher séria é a que ama. Enquanto não ama, ela não é nada. A mulher que não ama acaba apodrecendo". Diria ainda: - "Não amar é apodrecer". Era o que tinha aprendido na sua clínica ginecológica. Até aquela data, não encontrara um câncer feminino que não tivesse sua origem na pura e simples falta de amor. Mas como poderia atirar essas verdades eternas e brutais a uma adolescênte que começava a amar? Fazia abortos, desafiando a ética da classe; era considerado um bandido da especialidade; mas não tinha coragem de aconselhar uma cliente casada: "Não ama seu marido? Pois ame alguém e já. Não perca tempo, minha senhora"." (p. 161; cap. 28)

(RODRIGUES, Nelson; in Asfalto Selvagem - Engraçadinha, seus pecados e seus amores - 2008, Editora Agir/ Ediouro)

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