terça-feira, 30 de novembro de 2010

Sobre poesia

Numa noite de olhos vagos,
com um gesto,
você interrompe minha imersão,
- qualquer tolice acometia
minha mente;
(catarse)
Para me dizer que sou escarlate.
Eu ruborizo ao descobrir que há um poeta no ponto de ônibus.
O verso dos versos fala sobre construções,
construções democráticas.
imagino sociologia...
Num processo tão humano,
- esponaneidade,
reaprendo o sorriso.

Obrigada.

***

Estrela Vermelha


a voz vem
do teu braço em chamas
mas são teus olhos que me
chamam.
tons escarlates,
vejo você destoando
dos mono-tons da noite quente
e me exaspero
e temo ônibus diferente
mas você entra,
escarlate,
e senta bem na minha frente.

(à você, lindo olhar, uns poucos versos)


Elias Nasser 29/11/2010

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sobre poltronas

Numa quinta-feira comum; um envenenamento verborrágico

Estava lendo sobre a história do carnaval do Rio de Janeiro – um deleite; quando fui tomada pela curiosidade em um diálogo; eles falavam sobre um artigo de jornal – sim, mais uma vez, jornais – o jornalista questionava a questão da moralidade do sujeito em meio às necessidades postas e afloradas através de seu processo de amadurecimento e sobre a impossibilidade em assumir postura estática diante das situações nesse viés construtivo. Mas, ao ouvir secundariamente tal diálogo, o que realmente me despertou - a ponto de me retirar da órbita estabelecida pela rotina, foi ter escutado um nome: Clarice Lispector.
Sim, aparentemente, o comunicador iniciou seu discurso citando uma entrevista de Clarice, em que ela afirma não ter feito concessões. Bom, naturalmente, todos nós fazemos concessões, é o princípio imanente ao convívio social, tendo em vista a instintiva postura do homem como transeunte no mundo, afinal, como ser, sendo estático? Não há locus à inflexibilidade, de forma que a vida é uma constante assimilação de realidades que nos leva ao movimento da reflexão.
Para meu maior espanto, o jornalista toca a moral; em sua linha raciológica, incita a contraposição entre a manutenção da coerência pela linearidade da postura – ética, e a flexibilização do indivíduo que em face do cotidiano, pondera as escolhas e as estabelece - postura que fere o censo moralidade.
Dois pontos me chocaram ainda mais: 1. Todo esse discurso foi desencadeado por conta de uma sensaboria a qual a mídia tem dado atenção, questão a qual não vou ater-me, veja com seus próprios olhos, de antemão, informo que é acerca do autor de uma biografia sobre Clarice, não a li, mas soube que vendeu muito. 2. Agora, um convite a uma reflexão mais profunda e claramente preocupante: nossa sociedade ainda está na velha crise do sujeito que não é capaz de se assumir ou se afirmar em relação ao mundo, amoral é ainda ater-se à dúvida quanto à moralidade.
Chegamos ao ápice da afirmação do indivíduo, o sujeito dono de suas ações, cheio de autoafirmações, capaz de construir e desconstruir com as próprias mãos, e então vemos a grande falha. O ponto é que afirmamos o ego de maneira exacerbada, mas nos traímos, à medida que permanecemos vítimas das instituições, da sociedade como instituição do preconceito, da ordem, da fé, fruto de um concesso quanto ao estabelecimento de padrões de justiça; polarizamos as dualidades, estamos sob o julgamento quanto ao certo e o errado,o bem e o mal, o bom e o mau, quando, obviamente, não há como dimensionar o estreito espaço em que tais acepções se tocam.
Me volto ao indivíduo, não entendo, essa postura resignada me frustra, quando o homem vai passar à ação e deixar se sentir atuante no mundo à perspectiva de ler jornais? Ainda estamos patinando no patamar de não conseguirmos nos enxergar no mundo. O leitor que se ilude com qualquer ideia desgastada; não sou capaz de assumir esse indivíduo que se deslumbra ao descobrir algo que deveria ser inferido, o sujeito-número que é incapaz de dimensionar-se como integrante e responsável por cada milímetro do processo pelo qual evolui a humanidade, incapaz da mesma maneira em refletir sobre sua condição ambivalente, como homem.
Deve ser tudo fruto da minha imaginação ou da minha cruel ingenuidade, e não confundam minha crítica com vileza, quando o sujeito de que falo, é obviamente o letrado, o leitor do jornal, eu, você, o jornalista, o sujeito que acorda e vai até a caixa de correios com avidez, em busca de seu guia, ou o que aguarda apreensivo pelo barulho da motocicleta para poder degustar seu café e iniciar o ritual de passar a geleia no pão.
Então me pergunto: o que está agora, fazendo o intelectual? Passivo, lendo jornais para ter a ilusão de participação no mundo, na esperança de que os papéis lhe deem a fórmula? O ensinem a beber, comer, vestir? Pensar? Estão todos assistindo mais TV, usufruindo mais da tecnologia? Consumindo mais seriados, novelas, revistas, estilos, fé? Buscando desesperadamente uma forma de consumir sua solidão que está perdida no ego? Esse mesmo ego que o trai pelo fato de não permitir a reflexão sobre si, esse ego que legitima a instituição que promoverá a crise do sujeito.
O grande problema deve ser o conforto proporcionado pelas poltronas.
Ao chegar em casa hoje, avistei uma placa que indicava que o elevador estava em manutenção, então pensei: por que não fiz escolhas mais simples? Deveria ter alugado um apartamento no primeiro andar, subir nove andares me cansa.
Se a negação da moralidade está em negar as reflexões, prefiro a perspectiva de manter a fantasia da coerência, não fazendo concessões.
Voltando a Clarice, nunca imaginei que uma declaração tão linda pudesse desencadear tamanha verborragia ignóbil, é tão difícil assim assimilar que ela não cedia pelo simples fato de que era uma literata e não uma comunicadora? Na entrevista, ela apenas respondeu gentil e pacientemente, às indecências a que foi exposta.
Por fim, sinto enjoo, realmente, estômago sensível, talvez eu devesse buscar alguma revista sobre nutrição, dietética e saúde, algum caderno sobre bem-estar no bloco do veículo comunicador diário, para me prevenir quanto ao que devo ingerir, a fim de digerir melhor essas indelicadezas.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Metrópole

São Paulo - nov/2010

Chove muito;
As faces hepáticas
- em meio a uma cidade cinza.
A propriedade,
a sociedade
privada;

Tudo não passa
de imenso deboche.

A conveniência
- em farta-se de clichês.
Os prédios,
seus muitos andares
- prestígio e luzes de natal.
A fé que desumaniza
o sujeito que se curva;
a regência monolítica,
concreto.
Os jornais que não denunciam
a violência - consensual.
A juventude perdida no trânsito
- do movimento pendular.
O relógio.
O semáforo.
Vermelho;
há matéria orgânica no asfalto,
a desaceleração;
- ruídos, indiferença e caos.
O sujeito mudo;
muitos anúncios,
deslumbramento.
A ordem - consumo;
mecanicidade.
O burocrata
- ideário de justiça,
sujeito positivo;
a população em castas;
casta, castrada.
Há muito lixo pelas ruas;
há muitos homens negados,
- antiestético;
pelas ruas.

A dificuldade em assimilar espaço e tempo.
E a crítica que só corrobora o sujeito desenquadrado.
Chove muito;
e o barulho dos carros... é ensurdecedor.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Sobre diálogos

Um processo polifônico

Deus - assim como o diabo - é essencialmente humano na medida em que é a tensão gerada pelo encadeamento construtivo do processo social; sendo as ações do indivíduo, micro pólo; é essa rede histórica do pacto social.
Uma visão antropocêntrica, talvez imatura, que pende à ingenuidade ao não assumir alguma acepção de acaso, e ignorar o homem como processo existencial recente em vista ao mundo; mas uma forma.
Eu me confundo nesse processo construtivo, se é esférico ou helicoidal? Se são camadas que inflam sob outras a partir de um suposto núcleo, ou se são espirais, formando ciclos que se tocam com tamanha sutileza diacrônica?
Enfim, um foco pela perspectiva do ego; sendo esse, ponto de referência instintivo.
Aparentemente, esse é o indício veemente da nossa maior contradição, e também nosso áporo.
Talvez eu precise beber mais da quântica e astronomia, mas, e se a gente pensar que essa necessidade de assimilação por um deus é sumariamente humana?

domingo, 21 de novembro de 2010

Instruções para promover um embate

Primeiro; escolha
- com todo cuidado imanente ao ato;
Escolher - e caminhe,
caminhe dez passos à frente
(sim, é necessário um número; exato)
vire à direita, lembre-se:
a esquerda é tendenciosa.
Desenrole um assunto banal,
torne a situação constrangedora;
humana
- fale sobre curiosidades, intuições
a curiosidade inerente ao ser
sobre a percepção de tempo,
sobre o como somos perecíveis
e essa necessidade pelo outro?
Sorria - para dar à cena merecida perplexidade.
Procure os olhos, fixe-os,
devie-os - de maneira safa,
repetidas vezes.
E percamos tempo
tentando manter o instante complexo
em que nos equilibramos
- como num jogo;
evitando silêncios.

sábado, 20 de novembro de 2010

Orientações para uma desconstrução

O porque da inconsequência do beijo

É num ato de inclinação,
desequilíbrio - rearranjo de eixos
- pode durar segundos, quiçá minutos.
Criamos um novo centro de gravidade;
mantido num equilíbrio sensível, fugaz
um ponto que foge do eu, e outro do tu
e - por instante - converge exatamente ao nós.
Instante que rompe-se inesperadamente,
como que para não sufocar o indivíduo,
que automaticamente emerge ao ego,
mas repetidas vezes pende,
escapando pela tangente.
Como num ciclo, dada necessidade de movimento
Como num vício, da ansia por experimentar
É como desafiar cada milimetro de fim transposto em pele.
É a negação do limite ao qual a teoria nos faz crer
- de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço,
concomitantemente.
Sutilezas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Sobre degraus

E eu senti aquele medo por dentro
aquele medo que é só meu;
que sobe dos quadris à nuca
e faz contrair os ombros,
ao passo que espremo as pálpebras.
Aquele medo de quem já não tem medo,
porque sabe reconhecer Amor.

Más sobre escaleras

(Cortázar)

Em algum lugar da bibliografia que não quero lembrar foi explicado uma vez que há escadas pra subir e escadas para descer; o que não foi dito na ocasião é que também há escadas para ir para trás.

Os usuários desses úteis artefatos entenderão sem esforço excessivo que qualquer escada vai para trás se a gente sobe de costas, mas o que resta saber nesses casos é o resultado de tão insólito processo. Faça-se teste com qualquer escada externa; superando o primeiro sentimento de incômodo e vertigem, se descobrirá em cada degrau um âmbito que, embora faça parte do âmbito do degrau precedente, ao mesmo tempo o corrige, critica e amplia. Pense-se que pouquíssimo tempo antes, na última vez em que se subiu nessa escada da maneira usual, o mundo de trás era abolido pela própria escada, sua hipnótica sucessão de degraus; mas basta subi-la de costas para que um horizonte a princípio limitado pelo tabique do jardim pule agora até o campinho do Peñaloza, depois abarque o moinho da turca, estoure nos álamos do cemitério e, com um pouco de sorte, chegue até o horizonte de verdade, o da definição que a professorinha da terceira série nos ensinava. E o céu, e as nuvens? Conte-as quando estiver no topo, beba o céu que lhe cai em plena cara por um imenso funil. Quem sabe depois, quando der meia-volta e entrar no andar alto da sua casa, em sua vida doméstica, diária, perceba que também é preciso olhar para muitas coisas dessa forma, que também numa boca, num amor, num romance, é preciso subir para trás. Mas tome cuidado, é fácil tropeçar e cair; há coisas que as obriga a despir-se tanto; obstinadas em seu nível e em sua máscara, vingam-se cruelmente de quem sobe de costas para ver outra coisa, o campinho dos Peñaloza, os álamos do cemitério. Cuidado com essa cadeira; cuidado com essa mulher.


***


En un lugar de la bibliografía del que no quiero acordarme se explicó alguna vez que ay escaleras para subir y escaleras para bajar; lo que no se dijo entonces es que también puede haber escaleras para ir hacia atrás.

Los usuarios de estos útiles artefactos comprenderán sin excesivo esfuerzo que cualquier escalera va hacia atrás si uno la sube de espaldas, pero lo que en estos casos está por verse es el resultado de tan insólito proceso. Hágase la prueba con cualquier escalera exterior; vencido el primer sentimiento de incomodidad e incluso de vértigo, se descubrirá a cada peldaño un nuevo ámbito que si bien forma parte del ámbito del peldaño precedente, al mismo tiempo lo corrige, lo critica y lo ensancha. Piénsese que muy poco antes, la última vez que se había trepado en la forma usual por esa escalera, el mundo de atrás quedaba abolido por la escalera misma, su hipnótica sucesión de peldaños; en cambio bastará subirla de espaldas para que un horizonte limitado al comienzo por la tapia del jardín salte ahora hasta el campito de los Peñaloza, abarque luego el molino de la turca, estalle en los álamos del cementerio, y con un poco de suerte llegue hasta el horizonte de verdad, el de la definición que nos enseñaba la señorita de tercer grado. ¿Y el cielo, y las nubes? Cuéntelas cuando esté en lo más alto, bébase el cielo que le cae en plena cara desde su inmenso embudo. A lo mejor después, cuando gire en redondo y entre en el piso alto de su casa, en su vida doméstica y diaria, comprenderá que también allí había que mirar muchas cosas en esa forma, que también en una boca, un amor, una novela, había que subir hacia atrás. Pero tenga cuidado, es fácil tropezar y caerse; hay cosas que sólo se dejan ver mientras se sube hacia atrás y otras que no quieren, que tienen miedo de ese ascenso que las obliga a desnudarse tanto; obstinadas en su nivel y en su máscara se vengan cruelmente del que sube de espaldas para ver lo otro, el campito de los Peñaloza o los álamos del cementerio. Cuidado con esa silla; cuidado con esa mujer.


(CORTÁZAR, Julio - Más sobre escaleras)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sobre passado

18/11/2010

Estive caminhando pela manhã e como em tantos outros dias, me veio à mente a lembrança de Artur.
Não, há tempos não tenho sua presença aleatoriamente a entremear meus pensamentos, mas hoje em meus nove quilômetros de deleite raciológico - entre sorrisos provocados por Baden Powell e risadas por lembranças de uma das tantas noites sujas acompanhadas por Frederico - bom, sem delongas, lembrei Artur porque algo fez sentido.
Há um lugar estrategicamente projetado no parque, em que um Ipê de flores amarelas foi posto exatamente ao lado de um Jacarandá-mimoso de flores roxas - como num beijo, inconsequentemente - há um período no outono em que ambos floram; impressionante como as coisas acontecem da forma como tem de ser, a gravidade leva as flores ao chão e como num mosaico, a força gerada pelo momento em que as cores se tocam é um convite ao delírio.
Lembrei Artur porque - entre tantos outras discussões telefônicas a que nos demos durante dois anos - quis por um período fazer listras roxas e amarelas em uma das quatro paredes do meu antigo quarto e ele me disse que roxo e amarelo simbolizaria morte, a ideia de morte me chocou naquela noite, mais ainda a falta de sensibilidade à que fui exposta, assim como noutra vez, ele negou uma conclusão minha de que há possibilidade em traspor psicodelia através da composição entre apenas duas cores: preto e branco.
A psicodelia, ao meu ver, é um complexo flerte de sugestões e formas, obviamente possibilitada pela interação entre a presença e a ausência, a soma do tudo e a abstração do nada. A psicodelia é como um ato de permissão adotado pelo sujeito. É uma riqueza de ambivalências, quase tal como o luxo da dúvida, o prazer dos detalhes, dado o sabor da pormenorização.
Então - hoje pela manhã, ao lembrar tais casualidades - senti exatamente Caetano "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é" e sorri, com a mesma naturalidade com que o faço todos os dias, porque sorrir é um ato que começa nos pés, agita cada molécula de água do corpo, aquecendo - e, como numa explosão - eclode na face, ingênua e incontrolavelmente, como luz, a mesma luz de que dependemos para tatear cores.
Com toda sinceridade do mundo, desejei que Artur tenha amadurecido a sinestesia precisa à arte.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sobre lembranças

Sobre Vovó
(1929 - 2007)

Estive revolvendo algumas coisas velhas depois que vovó faleceu, curiosamente, encontrei uma edição amarelada da Folha de S. Paulo, que data 1968, mais intrigante foi a sensação que tive ao visualizar Carlos¹ - ao lado de uma receita de bolo de chocolate - numa época em que cabia à um jornal instruir uma dona de casa quanto à delicadeza em construir uma sobremesa. Carlos, recordei tão longos diálogos, saborosos e intermináveis - tardes de reflexões mútuas, eu e Carlos.
Deixei-me levar pela vertigem proporcionada pela práxis. 1968, A Rosa do Povo, quantos bolos de chocolate ainda será preciso ingerir ao longo de uma existência? A sensação de existência proporciona uma divagação que aproxima ao caos, as palavras que não cicatrizam, as lembranças que não cicatrizam, os golpes, as crenças, os protestos, a nudez... a perecividade, o medo, as dúvidas, a moral, a política, a sociedade tão cheia de valores, frases feitas, máximas, verdades absolutas... as contradições... os analgésicos, a fragilidade, os ciclos, o conforto e o desconforto dos ciclos... sim, a esperança inerente aos ciclos e nossa impotência quanto à força cíclica dos fatos; tropeço no limiar da desordem, tenho a sensação de que posso retomar a lucidez, mas não, sei que não, não volto.
Sinto que talvez essa seja uma das melhores lembranças que tive de vovó, com todo seu comportamento retrógrado, machista, sempre dizendo que jornais não competem à mulheres. A vi durante anos vaga-vagando pela casa, numa solidão amedrontadora, sentava sempre ao canto direito do grande sofá; guardava muitas coisas velhas e algumas lembranças da infância que lhe davam um tênue olhar de vivacidade. A casa sempre com poucas lâmpadas, quase sempre todas apagadas, os móveis escuros, as transições, pensamentos bruxuleantes. Vovó não se permitia muitos entendimentos, gostava de Vargas, Jânio - comumente populistas - e falava com orgulho de o quanto foi dependente de todos durante a vida e de como desaprendeu tantas coisas à medida dessa dependência. Bordava, sim, bordava durante horas - numa semsaboria como quando você liga a TV para fixar-se em algo - as linhas oferecem tamanha diversidade de cores, mas vovó mantinha o conservadorismo e a ordem. Visitava a Igreja e tentava nos fazer temer ao diabo, num engraçadíssimo paradoxo, sendo preciso crê-lo para então temê-lo... mas, como deve ser, novamente, volto-me a Carlos, impossível não recordar algum famigerado verso do poeta - desta vez, numa das sete, dentre tantas outras possíveis faces:

"Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo."

Vovó nunca viveu 1968, vovó nunca soube cozer bolos.


1 - Consolo na Praia

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.


O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.


Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas olhas o mar.


Não fizeste o livro perfeito.
Não leste os melhores livros
nem amaste bastante a música.
Mas tens um cão.


Algumas palavras duras,
em voz baixa te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humor?


A injustiça não se resolve.
A sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido,
Mas virão outros.


Tudo somado, devias
Precipitar-te - de vez - nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme meu filho.



(ANDRADE, Carlos Drummond de; in
A Rosa do Povo)



Perdoem-me os que sentiram pela ausência da receita, mas perdi o jornal.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sobre madrugadas - 10/11/2010

Instruções para promover o fragmento; um parágrafo sobre ambivalências

Você disse que eu falo demais, arquétipo – e isso me soou tão típico, talvez eu pressentisse uma surpresa. Eu falava sobre o como me impressiona a literatura das fugazes matrizes imagéticas pós advento do cinema. Você me disse que desde sempre apreciou o viés do texto milimetricamente detalhado. Falamos muito sobre a representação do real e concordamos sobre o quão saboroso é caminhar depois de fumar um cigarro monocromático. […] Houve um cúmplice silêncio […] Perguntei o que você pensava, assumo, grande tolice. Discordamos quanto à sensibilidade de alívio. Então confessei uma ideia comum, que me faz lembrar infantilidade.– Sinto, sim, confesso que sinto uma curiosidade imensa em saber o que as pessoas estão pensando – o que, na verdade, possa ser mentira; estive por um ou dois, não mais que segundos, desejando pegar com os olhos as tuas divagações. Você naturalmente me disse que pensar não é o mesmo que sentir. Automaticamente, notei um embate. – A tênue linha entre o pensar e o sentir; penso que racionalizo o que sinto e quando penso, penso que sinto menos. Aqui sentada, entendo que meu comportamento é este: O ato de entender me faz maior observadora do mundo, se destrincho, é como se fosse capaz de ignorar o medo, é preciso confundir sensibilidade e reflexão para perder o pavor que, impreterivelmente, intuo sobre o que desconheço. Superficializo o tato, sobreponho a lógica à tal esmiuçamento, assim apreendo a paz estabelecida pela segurança da compreensão. As imagens da televisão me lembravam Monet – é tudo tão atraentemente monótono – e eu pensava o quão bela foi a inflexão que você efetivou em mim naquele instante. Quis te agradecer, espontânea e prontamente, emocionei-me ao experimentar essa deliciosa sensação de movimento a que você me propôs. Foi similar à dirigir uma cena de sexo projetando toda a efervescência ao focar apenas um rosto. E a música me invadia de maneira violentamente melancólica, aplausos e silêncio - e eu; hesito em me despedir daquela noite.