terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sobre lembranças

Sobre Vovó
(1929 - 2007)

Estive revolvendo algumas coisas velhas depois que vovó faleceu, curiosamente, encontrei uma edição amarelada da Folha de S. Paulo, que data 1968, mais intrigante foi a sensação que tive ao visualizar Carlos¹ - ao lado de uma receita de bolo de chocolate - numa época em que cabia à um jornal instruir uma dona de casa quanto à delicadeza em construir uma sobremesa. Carlos, recordei tão longos diálogos, saborosos e intermináveis - tardes de reflexões mútuas, eu e Carlos.
Deixei-me levar pela vertigem proporcionada pela práxis. 1968, A Rosa do Povo, quantos bolos de chocolate ainda será preciso ingerir ao longo de uma existência? A sensação de existência proporciona uma divagação que aproxima ao caos, as palavras que não cicatrizam, as lembranças que não cicatrizam, os golpes, as crenças, os protestos, a nudez... a perecividade, o medo, as dúvidas, a moral, a política, a sociedade tão cheia de valores, frases feitas, máximas, verdades absolutas... as contradições... os analgésicos, a fragilidade, os ciclos, o conforto e o desconforto dos ciclos... sim, a esperança inerente aos ciclos e nossa impotência quanto à força cíclica dos fatos; tropeço no limiar da desordem, tenho a sensação de que posso retomar a lucidez, mas não, sei que não, não volto.
Sinto que talvez essa seja uma das melhores lembranças que tive de vovó, com todo seu comportamento retrógrado, machista, sempre dizendo que jornais não competem à mulheres. A vi durante anos vaga-vagando pela casa, numa solidão amedrontadora, sentava sempre ao canto direito do grande sofá; guardava muitas coisas velhas e algumas lembranças da infância que lhe davam um tênue olhar de vivacidade. A casa sempre com poucas lâmpadas, quase sempre todas apagadas, os móveis escuros, as transições, pensamentos bruxuleantes. Vovó não se permitia muitos entendimentos, gostava de Vargas, Jânio - comumente populistas - e falava com orgulho de o quanto foi dependente de todos durante a vida e de como desaprendeu tantas coisas à medida dessa dependência. Bordava, sim, bordava durante horas - numa semsaboria como quando você liga a TV para fixar-se em algo - as linhas oferecem tamanha diversidade de cores, mas vovó mantinha o conservadorismo e a ordem. Visitava a Igreja e tentava nos fazer temer ao diabo, num engraçadíssimo paradoxo, sendo preciso crê-lo para então temê-lo... mas, como deve ser, novamente, volto-me a Carlos, impossível não recordar algum famigerado verso do poeta - desta vez, numa das sete, dentre tantas outras possíveis faces:

"Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo."

Vovó nunca viveu 1968, vovó nunca soube cozer bolos.


1 - Consolo na Praia

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.


O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.


Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas olhas o mar.


Não fizeste o livro perfeito.
Não leste os melhores livros
nem amaste bastante a música.
Mas tens um cão.


Algumas palavras duras,
em voz baixa te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humor?


A injustiça não se resolve.
A sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido,
Mas virão outros.


Tudo somado, devias
Precipitar-te - de vez - nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme meu filho.



(ANDRADE, Carlos Drummond de; in
A Rosa do Povo)



Perdoem-me os que sentiram pela ausência da receita, mas perdi o jornal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário